Por António dos Santos Queirós, professor e investigador, Universidade de Lisboa
O presidente francês, Emmanuel Macron, convidou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para o acompanhar na sua visita de Estado à China. O discurso que ela proferiu antecipadamente perante dois think-tanks europeus e a Declaração Conjunta entre a República Francesa e a República Popular da China revelam as divergências latentes entre os líderes europeus: a deriva da Comissão Europeia para a perda de autonomia estratégica é agora problematizada pelo discurso ambíguo da própria líder; a posição da França, de “relançar a dinâmica das relações franco-chinesas em todos os domínios”, parece traduzir a vontade da maioria dos governos europeus, de reavivar os laços comerciais e diplomáticos com a China.
O discurso da presidente da Comissão Europeia, ao propor uma “estratégia de redução dos riscos económicos”, afirma que a União Europeia precisa definir o seu futuro relacionamento com “a China e outros países em áreas sensíveis de alta tecnologia, como microeletrônica, computação quântica, robótica, inteligência artificial e biotecnologia”, mas omite quais são esses outros países e sobretudo, oculta a crítica à lei/plano dos Estados Unidos “contra a inflação”, que visa subsidiar a produção em território americano de tecnologias limpas com 370 mil milhões de dólares, que a própria UE considera discriminatória, e contrário às regras da Organização Mundial do Comércio e que, em paralelo com a escalada inflacionária, ameaça levar as empresas europeias a abandonar o seu continente.
Hoje há sinais claros de que os partidos e políticos conservadores e neoliberais que dominam o parlamento europeu e escolhem os líderes da Comissão, já não representam nem os interesses do seu sector empresarial, nem da maioria dos seus cidadãos, abrindo um largo campo político para o crescimento da extrema-direita chauvinista. A presidente de Comissão Europeia, que negociou com a China durante sete anos o Acordo Global de Investimento (CAI, sigla em inglês) e celebrou a sua importância para a recuperação económica e a prosperidade comum, afirma no seu discurso que o documento deve ser revisto porque pode pôr em causa a segurança europeia! Acusa a política chinesa de sobrepor o imperativo de segurança e controle à lógica dos mercados livres e do comércio aberto, mas propõe aos governos europeus fazer exatamente aquilo de que a China é acusada, servindo-se dos regulamentos e das sanções!?
Contudo, nem a burocracia de Bruxelas pode negar os contributos decisivos da China para a erradicação da pobreza e a diplomacia da paz, que constituem a essência da Declaração Universal dos Direitos do Homem e, não menos importante, o seu papel na transição ecológica e do desenvolvimento sustentável. “Em menos de 50 anos, a China saiu da pobreza generalizada e do isolamento econômico para se tornar a segunda maior economia do mundo e líder em muitas tecnologias de ponta. Desde 1978, o crescimento médio foi de mais de 9% ao ano e cerca de 800 milhões de pessoas saíram da pobreza. Esta é uma das maiores realizações do último meio século.”… Existem algumas ilhas de oportunidade nas quais podemos construir. Vejam as mudanças climáticas e a proteção da natureza. Congratulo-me com o papel de liderança que a China desempenhou na garantia do histórico Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal. E, algumas semanas atrás, a China também foi um participante ativo no acordo global para proteger a biodiversidade em águas internacionais. Num momento de conflito e tensão global, essas são conquistas diplomáticas notáveis – nas quais a China e a União Europeia trabalharam juntas”, afirmou Ursula. “Existem algumas ilhas de oportunidade nas quais podemos construir (…) a diplomacia ainda pode funcionar – seja na preparação para uma pandemia, na não proliferação nuclear ou na estabilidade financeira global (…) A China é um parceiro comercial vital – respondendo por 9% de nossas exportações de mercadorias e mais de 20% de nossas importações de mercadorias. Enquanto os desequilíbrios estão crescendo, a maior parte do nosso comércio de bens e serviços permanece mutuamente benéfico e ‘sem riscos’”, concluiu.
A presidente da Comissão Europeia, logo se contradiz ao postular como “a quarta parte da estratégia de redução de riscos econômicos o alinhamento com os parceiros do G7 e do G20”, (orientados para acordos de livre comércio onde ainda não os temos) como com a Nova Zelândia, Austrália, Índia, os nossos parceiros da Asean e do Mercosul, e o Japão, através da iniciativa estratégica Global Gateway, que procura mimetizar a nova Rota da Seda.
Enfim, a Comissão Europeia pretende traçar a sua política internacional, como se a Organização das Nações Unidas não existisse e ignorando que, sob a batuta dos EUA, seguindo a estratégia dos teóricos “da Velha e da Nova Europa”, o próprio presidente dos EUA criou na prática um novo bloco político-militar, a pretexto da guerra na Ucrânia, que congrega a maioria das antigas repúblicas socialistas, tendo o governo da Polónia como cabeça política e quartel-general da sua geoestratégia.
No caminho da parceria estratégica, pela paz e pelo desenvolvimento sustentável
A política internacional da França, apesar de enfraquecida pela crise social que nela alastra, tem na Declaração Conjunta um projeto de cooperação que serve, em primeiro lugar, o objetivo de recuperar a autonomia da UE, no advento de uma nova ordem internacional. São os governos da França e da Alemanha quem realmente decidem a política da UE. Citemos a sua linha geral:
A França e a China, membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, acreditam que as diferenças e disputas entre os Estados devem ser resolvidas pacificamente por meio do diálogo e da consulta. Procuram fortalecer o sistema internacional multilateral sob a égide das Nações Unidas, num mundo multipolar.
A França e a China reafirmam o seu compromisso de promover de forma equilibrada os três pilares do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada.
Ambas as partes apoiam todos os esforços para restabelecer a paz na Ucrânia com base no direito internacional e nos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas. A França reafirma o seu apego à política de uma só China.
A França e a China comprometem-se a conceder condições de concorrência justas e não discriminatórias às empresas. A China e a França saúdam os resultados obtidos pelo acordo intergovernamental de 2015 sobre parcerias em terceiros mercados.
As duas partes reafirmam o desejo de fortalecer a cooperação no campo das indústrias culturais e criativas, a cooperação no ensino recíproco da língua, a cooperação no ensino superior e na formação profissional.
A França e a China concordaram com a importância de aumentar o apoio prestado aos países mais afetados pela crise alimentar, incluindo os seus parceiros africanos, nomeadamente através da Organização das Nações Unidas.
A França e a China reforçam o seu apoio ao sistema multilateral de comércio centrado na Organização Mundial do Comércio e na sua reforma. Pretendem cooperar para remediar as dificuldades de acesso ao financiamento das economias em desenvolvimento e emergentes, nomeadamente com a implementação do Quadro Comum para o Tratamento da Dívida adotado pelo G20 e pelo Clube de Paris e incentivar uma aceleração de sua transição energética e climática, apoiando o seu desenvolvimento sustentável. A China participará da Cúpula para um Novo Pacto Financeiro Global em Paris em junho de 2023. A França participará do Terceiro Fórum do Cinturão e Rota para Cooperação Internacional.
A França e a China reafirmam os seus respetivos compromissos de neutralidade climática/neutralidade de carbono e efetiva implementação do Quadro Kunming-Montreal, apoiam a promoção e o desenvolvimento de financiamentos que contribuam para a transição ecológica. Os dois países saúdam o acordo Conferência Intergovernamental sobre Biodiversidade Marinha de Áreas Além da Jurisdição Nacional (BBNJ).
A França e a China enfatizam a importância, para o desenvolvimento de cada país, da promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais de acordo com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas.