Por José Nelson Bessa Maia, economista brasileiro, mestre em Economia e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador independente das relações China-Brasil, China-Países Lusófonos e China-América Latina.
As relações entre a China e os EUA remontam ao ano de 1844, quando ambos os países firmaram em Macau o Tratado de Wanghia. Nos 180 anos seguintes, o relacionamento bilateral oscilou entre períodos de aproximação e de afastamento. Houve momentos em que ambos os países compartilharam objetivos comuns como durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos de 1980 e 1990, com a globalização, bem como outros momentos em que a relação foi marcada pela dissensão, como no caso da década de 1950 e no primeiro quartel do século XXI.
Com a ascensão pacífica da China a partir de 1978 e seu rápido desenvolvimento econômico e tecnológico surge uma rivalidade, uma vez que os meios dirigentes dos EUA se sentem incomodados com o risco de erosão de sua longa hegemonia econômica e financeira. Os EUA como a China se veem então envolvidos numa competição crescente que abrange os campos econômico, tecnológico e geopolítico, incluindo movimentos de mudança na governança global. Atualmente, ambos os países, apesar de sua forte interdependência produtiva e de sua posição como maiores economias e exportadores mundiais, não compartilham da mesma cota de contribuição para a estabilidade e o dinamismo econômico do Planeta. Enquanto a China atua positivamente, os EUA se tornam cada vez mais protecionistas e menos cooperativos, afetando negativamente a economia internacional.
Para agravar o quadro, a competição entre os EUA e a China transcorre em um contexto de baixa e decrescente eficácia dos mecanismos da chamada ordem liberal internacional do pós-Segunda Guerra Mundial. Conflitos armados na Europa, na África e no Oriente Médio, o declínio do apoio dos países à globalização econômica, o aumento do nacionalismo, do populismo e do protecionismo e uma série de choques nas áreas de alimentos, saúde, energia e mudança climática têm vindo, nos últimos anos, a estressar a comunidade internacional, em especial os países do Sul Global, e gerar inquietações quanto ao futuro pacífico da humanidade.
Nesse contexto pouco promissor, as ameaças em curso de aumento de tarifas de importação, sem justificativa alguma, pela nova administração dos EUA a diferentes parceiros comerciais adiciona mais um componente de instabilidade nos mercados internacionais, levando a retaliações e pressões de custos que afetam adversamente o crescimento dos países, não apenas aqueles prejudicados pelo aumento tarifário sobre suas exportações, mas os próprios EUA, cujos consumidores e empresas pagarão mais caro pelos produtos importados, gerando mais inflação, abalos na confiança e menos crescimento.
Lamentavelmente, parece que estamos a testemunhar uma situação parecida com aquela provocada pela edição da malfadada Lei tarifária Smoot-Hawley de 1930 que, pelas retaliações recíprocas de aumentos de tarifas que causou, levou a uma redução das exportações e importações estadunidenses em 67%, um declínio de quase dois terços nos fluxos de comércio global e uma pressão depressiva sobre o cenário econômico internacional e a geopolítica, e que acabou por levar ao poder o regime nazista na Alemanha e à Segunda Guerra Mundial.
No caso da China, o Governo dos EUA anunciou há poucos dias sua decisão de impor uma tarifa adicional de 10% sobre mercadorias importadas do país, sem uma justificativa plausível. Uma imposição unilateral de tarifas adicionais que viola seriamente as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Uma medida que interromperá a tão necessária cooperação econômica entre a China e os EUA e ameaçará a estabilidade das cadeias globais de suprimentos, com impactos adversos no comércio e na economia internacionais.
Conforme o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, o país lamenta e se opõe firmemente à decisão protecionista dos EUA e tomará as providências necessárias para defender seus interesses legítimos. Tal medida unilateral não pode resolver os problemas internos dos EUA e, mais importante, não beneficia a nenhum dos lados, prejudicando, ao contrário, o mundo como um todo. O pretexto de penalizar a China pela questão relacionada com o fentanil, um opioide utilizado como medicamento, parece mais uma cortina de fumaça, algo descabido, pois a China é um dos países mais rigorosos no controle de drogas farmacêuticas, além de estrito cumpridor de suas obrigações internacionais nessa área, tendo cooperado ativamente com outros países, inclusive os EUA.
A China reagiu prontamente ao aumento tarifário estadunidense aplicando taxas de 15% para carvão e gás natural liquefeito dos EUA e 10% para petróleo bruto, equipamentos agrícolas e certos tipos de automóveis. As novas tarifas sobre exportações dos EUA começarão em 10 de fevereiro do corrente ano. Além disso, a China entrou oficialmente com uma contestação na OMC contra as tarifas discriminatórias impostas pelo Governo dos EUA sobre produtos chineses e está impondo controles de exportação de minérios estratégicos, como tungstênio, telúrio, rutênio, molibdênio e itens relacionados para salvaguardar os seus interesses de segurança nacional. No entanto, apesar da retaliação defensiva, a China mantém-se aberta ao diálogo construtivo para negociar esse impasse e normalizar suas relações comerciais com os EUA.
A nova onda protecionista da administração estadunidense não influenciará negativamente apenas o fluxo comercial e o crescimento entre as principais economias. Sua visão “neomercantilista” é tão míope e sua abordagem tão truculenta que poderá afetar também os alinhamentos geopolíticos existentes. Mesmo países historicamente aliados perderão a confiança nos EUA como um parceiro comercial e uma nação líder. Isso poderá levar a uma nova reconfiguração de laços entre a Europa e a Ásia, envolvendo outras potências econômicas. Os países até aqui considerados amigos e aliados dos EUA procurarão novas parcerias. Mesmo antes de ser cobrado qualquer receita de imposto adicional, as tarifas aumentarão a distância geopolítica no mapa do comércio global, ampliando o fosso diplomático entre os EUA e outros países.