Por J. Renato Peneluppi Jr., Advogado, especialista em Administração Pública Chinesa, membro do think tank não governamental Center for China and Globalization (CCG).
Um vento forte soprou dos dois extremos do mundo no último mês de outubro. Partindo de uma vasta terra no sul ocidental em direção ao norte oriental em um movimento que se alinha ao deslocamento do centro dinâmico do mundo, do Ocidente para o Oriente.
Essa rajada histórica estabeleceu um inédito terceiro mandato dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, e Xi Jinping, na China. Muito além de mera coincidência, essa sincronização de forças dos dois líderes aviva a construção de um mundo multipolar, abrindo um potencial novo ciclo econômico para a periferia global que deixa de ter os Estados Unidos como eixo central.
O Brasil abriu outubro conduzindo a eleição para o segundo turno, enquanto a China no meio do mesmo mês realizava o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh). Xi Jinping fazia história, como núcleo do Partido, fortalecendo os avanços e projetos para a nova era.
Com a vitória de Lula no segundo turno o ex-presidente volta ao cargo depois de 20 anos. Assim, um épico tom de vermelho marcava o outubro de 2022. Os dois cantos opostos do mundo davam um passo na mesma direção e com discursos semelhantes, na luta por um destino comum na redução da desigualdade de renda e erradicação da pobreza, e um futuro compartilhado de combate ao aquecimento global.
Portanto, a conjuntura interna e externa, impele os dois líderes a vislumbrar um horizonte comum.
Semelhanças no discurso não são coincidências
Tanto a China com questão de Taiwan, quanto o Brasil na polarização eleitoral radicalizada, ambos países possuem a pauta da reunificação nacional, vulnerável à intervenção estrangeira. Ou seja, a política interna depende de um trabalho ideológico, social, econômico e estrutural para se blindar e construir uma solução definitiva.
O combate à pobreza no Brasil, eliminando a fome e gerando inclusão social, tem um potencial transformador tanto para a pauta social quanto econômica. A China já superou essa etapa e já visualiza sua política de manutenção da superação da pobreza com a construção da prosperidade comum, para que a pobreza não retorne – o que ocorreu no Brasil por ter sido uma política de governo, e não de Estado. A China se volta para a revitalização do campo e o fortalecimento das cidades, enquanto o Brasil se prepara para dar importância ao pequeno proprietário rural, que produz 70% do alimento nacional.
As duas nações, gozam de ampla e forte experiência na eliminação da pobreza, com excelentes resultados anteriores, podendo cooperar e exportar essas políticas públicas para outros países no mundo, como ações nacionais e internacionais. Trata-se de uma missão universal civilizatória e emancipadora, para as nações e os excluídos do mundo, e a China apresenta a expansão da prosperidade comum para o mundo. Ambos os presidentes possuem interesse e condições técnicas para realizar o inédito.
A ciência e tecnologia vêm como instrumento central em ambos governos. Os chineses buscam a modernização pelo desenvolvimento de alta qualidade, e o futuro governo brasileiro para uma reindustrialização, da economia verde e digital, abrindo um potencial mercado exportador de bens de consumo, dos quais a China se abre para o mercado internacional.
A economia verde terá papel inovador em ambos os governos, com atenção especial à energia renovável, transição energética economia sustentável, aos fundos verdes, bem como a uma janela e base forte para retomar os créditos verdes (créditos de carbono) – sistema bem estruturado na China. As águas terão atenção especial, pelos rios, regiões alagadas e reservatórios subterrâneos.
O principio chinês de “águas lúcidas e montanhas exuberantes” dialoga com o desmatamento zero da Amazônia. A forte sinergia dessas políticas na luta contra a crise climática, mostrando que outro mundo é possível, gerando riqueza, preservando o meio ambiente e chamando os países centrais a assumirem a responsabilidade do abandonado Acordo de Paris, e o protagonismo que Xi Jinping vem anunciando como ecocivilização.
O líder brasileiro vê a cultura para alimentar a alma e combater as desigualdades, dando acesso para todos, produzindo emprego e gerando renda para democratizar acesso. Para o governo chinês, a cultura vem para consolidar um país próspero, forte, democrático e alcançar uma prosperidade comum, ajudando a promover a harmonia entre humanidade e natureza, construindo uma nova forma de progresso humano e uma nova economia que rejuvenesce a nação. Para os dois isso só pode ser realizado com um processo completo de democracia popular.
Por uma nova ordem global
A China busca uma nova forma própria de modernizar, construindo assim um novo modelo de desenvolvimento. O Brasil, encontra nos erros do passado a ausência de um modelo próprio que responda aos seus problemas. Ambos os líderes terão de gerar emprego e fortalecer o valor do salário – um desafio de grande envergadura para a situação econômica global atual.
As duas nações estão criando uma nova forma de progresso humano, onde a pobreza não pode existir, a prosperidade é comum, a harmonia com a natureza é crucial. Tudo isso para uma democracia integral se manifestar pela cultura dos povos, de que um outro mundo é possível.
Para isso, serão basilares as instituições internacionais que promovam a democratização dos espaços, como a reforma do Conselho de Segurança da ONU; a rearticulação do G20; a ampliação dos Brics+, além da Unasul e da Celac, e do apoio aos países africanos. Isso é necessário para construir uma comunidade humana com um futuro compartilhado e criar uma nova forma de progresso humano, para cada qual o seu qual.
Toda miséria humana é superável com capacidade técnica e conhecimento existentes hoje. No século XXI, a maior parte da comunidade global pode reorganizar a sociedade para que o conjunto da humanidade decida como usar o excedente de produção, entendendo que hoje se produz alimento para alimentar mais de 10 bilhões de pessoas por ano, e ainda assim, tem-se a fome da maioria da população mundial; exauri-se os recursos naturais levando o planeta à crise ambiental, por falta de gestão e distribuição.
Juntos, os dois países, Brasil e China, possuem uma interdependência econômica que perpassa diversas áreas, desde commodities alimentares a financiamento do setor energético, dando resiliência a relação. Além de serem parceiros comerciais, que possuem relações pragmáticas indiferentes de seus respectivos governos.
Os dois líderes observam a atual crise sistêmica que ameaça a economia, o social, o ambiente e a democracia. Por isso, tendem a cooperar em órgãos internacionais, catalizadores de um mundo multipolar como os Brics, a Unasul e na construção conjunta do Cinturão e Rota.
O Grande Encontro
O encontro desses dois parceiros-chave para uma potencial transformação do sistema global solidificaria o papel desses órgãos no mundo, além de apoiar outro papel aos países periféricos do chamado “Sul Global”. Essa união tende a fortalecer a multipolaridade e a busca por um sistema global que na luta contra o aquecimento global encontre também o combate à miséria e a construção de uma prosperidade comum.
Afinal, uma profunda crise tem sido característica do sistema econômico-financeiro global, que se desdobra em outras crises, contendo uma série de contradições e antagonismos que se desenvolvem por causa da hegemonia dos EUA, ameaçando o surgimento de uma alternativa econômica de desenvolvimento. A hegemonia da “América” ainda se dá pela superioridade militar, midiática/informacional e monetária (Swift), mas essa supremacia já começa a compartilhar a liderança com outras nações e até blocos.
Em meio a essa crise profunda do sistema econômico financeiro global, o declínio da ordem hegemônica dá lugar a pluralidade, mudanças essas que contradizem Fukuyama e o “fim da história”, resgatando consequentemente os “fantasmas”[1] de outros tempos que foram considerados como uma ameaça à paz e à estabilidade interna e externa das nações.
Por tudo isso, são três os pilares comuns para essa nova ordem em direção a uma nova era, através de uma sociedade que trabalhe para eliminar a pobreza, com uma economia de prosperidade comum, buscando uma relação sustentável com o meio ambiente. A cultura como meio para construir uma democracia popular em seu sentido pleno e mundial.
[1] Fantasma faz referencia a guerra fria, período em que via-se o Comunismo como uma ameaça. Marx no manifesto comunista iniciava com “um fantasma recorre a Europa: o fantasma do Comunismo”