por Iara Vidal*
Como um botton ajuda a explicar a política por trás das palavras sobre a China
Da estética de um balé revolucionário à disputa por nomes como Beijing e Partido Comunista da China
À primeira vista, a foto que ilustra este artigo mostra apenas um botton preso ao casaco. Pequeno, simples, quase discreto. Mas, como acontece muitas vezes na moda, o detalhe carrega história, memória e posição política.
Esse acessório foi criado pela artista Tings Chak para um grupo de amigas estrangeiras e chinesas — do qual faço parte — que recebeu o nome provocativo “China Propaganda Chicks”, que pode ser traduzido como “as garotas da propaganda pró-China”.
A piada não é gratuita. Ela responde a algo muito comum no debate ocidental: qualquer fala que não repita o discurso dominante sobre a China costuma ser rapidamente chamada de “propaganda”. O botton devolve esse rótulo em forma de humor. Se tudo vira propaganda, então o termo é assumido, transformado e usado com ironia. Aqui, a moda funciona como linguagem direta.
O Destacamento Vermelho Feminino
Mas o botton não é só brincadeira. A imagem usada faz referência a um balé muito específico e importante da história chinesa: O Destacamento Vermelho Feminino (The Red Detachment of Women), criado nos anos 1960 e transformado em um dos símbolos mais conhecidos da arte revolucionária chinesa.
A obra foi inspirada em batalhões reais de mulheres formados durante a Guerra Revolucionária Agrária da China, especialmente na ilha de Hainan, localizada ao sul do país, nos anos 1930. Naquele período, essas mulheres integravam o Exército Vermelho dos Trabalhadores e Camponeses da China, nome oficial das forças armadas comunistas antes da criação do atual Exército Popular de Libertação.
Conhecido internacionalmente como Chinese Workers’ and Peasants’ Red Army, o Exército Vermelho foi a principal força militar do Partido Comunista da China (PCCh) durante a guerra civil. Foi dentro dessa estrutura que surgiram destacamentos femininos como parte de um esforço mais amplo de mobilização popular, política e militar.
Esses destacamentos não eram simbólicos. As mulheres recebiam treinamento militar, aprendiam a manusear armas e atuavam como combatentes, mensageiras, guardas e enfermeiras, além de exercerem funções de organização política nas comunidades locais. Em sua maioria, eram camponesas pobres, ex-servas domésticas ou trabalhadoras rurais que viam na luta revolucionária uma possibilidade concreta de romper com relações de exploração e violência.
O balé transforma essa experiência histórica em linguagem artística. Nele, mulheres armadas aparecem como protagonistas da narrativa, não como figurantes. São corpos em formação coletiva, em marcha e em combate. A estética mistura arte, disciplina e luta, combinando elementos do balé clássico com gestos militares e uma narrativa política clara.
Com o tempo, essa imagem se tornou um símbolo forte. O Destacamento Vermelho Feminino ultrapassou o palco e passou a circular em cartazes, livros, exposições, filmes e objetos culturais. Ao reaparecer agora em um botton, essa estética mostra como a memória dessas mulheres continua viva — deslocada do campo de batalha para o cotidiano, do espetáculo oficial para o vestuário, da propaganda revolucionária para a reapropriação crítica.
Nesse sentido, o botton não apenas cita um balé. Ele aciona uma história concreta de mulheres organizadas, armadas e politizadas, lembrando que moda também pode funcionar como arquivo histórico e linguagem política.
Para saber mais sobre essas revolucionárias chinesas, recomendo o artigo de Tings Chak no People’s Dispatch:
https://peoplesdispatch.org/2021/02/06/the-enduring-legacy-of-chinas-red-detachment-of-women
Para conhecer o balé O Destacamento Vermelho Feminino
https://www.youtube.com/watch?v=ZlSvCglASRA
Nomear também é uma escolha política
A mesma disputa simbólica que aparece no botton do grupo de mulheres comunistas na China também se manifesta na linguagem. O modo como a China é nomeada, traduzida e apresentada ao mundo nunca é neutro. Palavras carregam história, enquadramento e intenção.
Em português, o nome correto é Partido Comunista da China (PCCh), e não “Partido Comunista Chinês”. A diferença pode parecer sutil, mas é fundamental. “Da China” se refere a um país e a um Estado concretos; “chinês” desloca o sentido para uma identidade genérica, quase cultural, como se o partido fosse apenas uma expressão abstrata de um povo homogêneo.
Em inglês, essa disputa fica ainda mais evidente. O próprio partido se autodenomina CPC (Communist Party of China), forma usada em documentos oficiais, discursos, comunicados diplomáticos e textos institucionais. Ainda assim, grande parte da mídia ocidental insiste em usar CCP (Chinese Communist Party), uma sigla criada e consolidada durante a Guerra Fria.
Essa escolha não é casual. CCP carrega um peso histórico e ideológico específico, associado ao imaginário do “perigo comunista”, da ameaça externa e do inimigo sistêmico. Ao ignorar a autodenominação e manter uma sigla herdada desse período, reforça-se uma leitura simplificada e frequentemente hostil da China, reduzida a um rótulo cristalizado no século 20.
Nomear, portanto, não é apenas descrever. É enquadrar. É escolher de que lugar político, histórico e cultural se fala. Assim como um botton pode ironizar e tensionar discursos dominantes, a linguagem também pode reproduzir ou questionar visões de mundo. E, nesse jogo simbólico, cada palavra conta.
Beijing, não Pequim
O mesmo raciocínio vale para o nome da capital chinesa. O nome correto é Beijing, não Pequim. A escolha não é detalhe gráfico nem preferência estilística. Ela revela como a China é historicamente nomeada a partir de fora — e como esse hábito ainda persiste.
Beijing segue o pinyin, sistema oficial de romanização do mandarim adotado pela China desde 1958. O pinyin foi criado para padronizar a escrita dos sons do chinês em letras latinas, apoiar o ensino da língua, facilitar a alfabetização e permitir uma comunicação internacional mais precisa. É esse sistema que orienta hoje a escrita de nomes como Beijing, Shanghai, Guangzhou e Shenzhen.
Já “Pequim” vem do francês Pékin, forma baseada em sistemas antigos de romanização usados por europeus, como o Wade-Giles. Essas grafias refletem pronúncias do mandarim anteriores à padronização moderna e passaram por mediações linguísticas coloniais, especialmente francesas e inglesas.
Em outras palavras, “Pequim” não nasce da forma como os chineses nomeiam sua cidade, mas da forma como ela foi ouvida, adaptada e escrita por estrangeiros em contextos históricos marcados por assimetrias de poder.
Por isso, o uso persistente de “Pequim” carrega um resíduo colonial. Ele mantém uma nomenclatura externa e ultrapassada, que ignora a atualização linguística promovida pela própria China e a maneira como o país se apresenta ao mundo hoje.
Usar Beijing não é modismo, militância ou alinhamento automático. É reconhecer a autodenominação, a soberania linguística e a padronização contemporânea adotada pelo país — o mesmo critério que costuma ser aplicado sem questionamento a outras capitais globais.
Moda também fala
Nada disso é detalhe. Nomear é escolher. Traduzir é interpretar. Vestir símbolos também é tomar posição no mundo.
Quando um botton recupera a estética de um balé revolucionário, ironiza o rótulo de propaganda e passa a circular no cotidiano, ele faz algo que a moda sempre fez em seus momentos mais politizados: transforma o corpo em suporte de memória, crítica e disputa simbólica. O que poderia ser apenas adorno vira comentário histórico.
É o mesmo gesto que está em jogo quando se opta por dizer Partido Comunista da China, e não “Partido Comunista Chinês”, ou quando se escolhe Beijing, e não Pequim. Em todos esses casos, trata-se de reconhecer a autodenominação, recusar heranças ideológicas e coloniais e assumir que linguagem também é campo de poder.
No fim das contas, moda também é linguagem política. Ela comunica, provoca e enquadra o mundo.
E, às vezes, um pequeno acessório preso ao casaco — assim como um nome bem escolhido — ajuda a entender o presente melhor do que muitos discursos oficiais.
* Iara Vidal é pesquisadora independente dedicada ao estudo das interseções entre moda, política e cultura. Jornalista brasileira radicada em Beijing, trabalha como editora na CGTN em português, emissora do Grupo de Mídia da China (CMG, na sigla em inglês).
