Durante as Duas Sessões deste ano, o ministro das Relações Exteriores da República Popular da China, Wang Yi, concedeu uma longa entrevista coletiva. Ele abordou diversos aspectos da política externa chinesa, sobretudo seus conceitos norteadores e as fontes da estratégia externa chinesa voltada à preservação da paz mundial em um ambiente externo conturbado. Tratou-se de uma coletiva de imprensa que impressionou pela serenidade com que o representante da chancelaria percorreu por vários e complexos temas da política internacional.
Por exemplo, Wang Yi pontuou de forma muito objetiva que a busca por consensos é a forma que a política externa chinesa sintetiza os aprendizados “com as práticas internacionais e extraindo sabedoria da cultura chinesa”. Assim pontos críticos são abordados de forma imediata via promoção de negociações de paz.
Não é comum essa postura. Trata-se de uma demonstração objetiva dos critérios conceituais e, mesmo, teóricos de como a liderança chinesa trata dos grandes desafios de nosso tempo, internos e externos. Ou seja, não se trata somente de ter o objetivo estratégico de um mundo pacífico. Mas também de ter uma estratégia elaborada no sentido de buscar pontos comuns em meio a interesses diversos que envolvem as relações internacionais e as disputas em todas as esferas de ação.
Por outro lado, estudar os pormenores de cada resposta dada por Wang Yi a cada questão levantada é um exercício interessante de perceber como os chineses sabem quem são seus amigos e seus inimigos. Sem a necessidade de nomear este ou aquele país. Somente a defesa de uma posição é suficiente para demonstrar a posição do país. A prática desta forma de agir na arena internacional pode ser observada na serenidade com que a China tenta lidar com ao menos duas questões: o conflito na Ucrânia e a guerra entre Israel e Hamas. A questão do conflito da Ucrânia foi abordada dentro de um quadro de conjunto, com observações que levam a uma percepção de oposição aos postulados impostos pelos países ricos.
No caso da Ucrânia, enquanto os países do G7 e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) “jogam gasolina na fogueira”, os chineses, segundo Wang Yi, demonstram que “todos os nossos esforços apontam para um objetivo, que é abrir caminho para acabar com o conflito e iniciar conversações de paz”.
A visão geral da China sobre o conflito fica clara com a preocupação sobre a situação da estabilização do continente europeu como um todo. Wang Yi expôs, neste sentido, que “a China também espera um retorno rápido à paz e à estabilidade no continente europeu e está pronta para continuar a desempenhar um papel construtivo para esse fim”. O que isso significa? Significa que para a diplomacia chinesa a estabilização da Europa será consequência de um processo onde os europeus não terão seus destinos amarrados a interesses de fora da Europa. Isso é fundamental para a estratégia chinesa de romper barreiras externas ao seu desenvolvimento tecnológico.
Na entrevista coletiva, o ministro das relações exteriores chinês apontou com muita clareza o compromisso da China com o multilateralismo e com o processo da Organização das Nações Unidas (ONU), pedindo igualdade de condições para os países em desenvolvimento e promovendo a influência do Sul Global. Essa elevação da influência do Sul Global não está desconectada com o fortalecimento da ONU. Segundo Wang Yi, “o fortalecimento do papel da ONU é vital, dadas as crises e os desafios observados nos últimos anos, mas é necessária uma reforma para aumentar a representação e a influência dos países em desenvolvimento.”
O mais interessante é notar, como ele mesmo disse, que a grande solução da China é a construção de uma comunidade de futuro compartilhado. “Observamos que se trata de um conceito que se transformou em algo universal.” Dez anos após a sua apresentação, Wang Yi observou que este conceito “agora está incluído nas declarações da ONU, bem como nas declarações da Organização de Cooperação de Shanghai, do Brics e de outras instituições internacionais”.
A questão da guerra na Faixa de Gaza foi abordada em termos realísticos por Wang Yi. Ele descreveu as ocorrências em Gaza como uma “tragédia humanitária” e uma “desgraça civilizacional”. De acordo com ele, “não há distinção entre vidas nobres e humildes, e a vida não deve ser rotulada por fé ou religião”. “O fracasso em acabar com esse desastre humanitário hoje, no século 21, é uma tragédia para a humanidade e uma desgraça civilizacional”. Wang conclamou a comunidade internacional a promover um cessar-fogo imediato e a distribuição de assistência humanitária. O diplomata disse que todos os detidos deveriam ser libertados e todas as ações que prejudicam os civis deveriam ser interrompidas. Wang também reiterou o apoio da China a uma conferência internacional de paz com autoridade para apresentar um roteiro para uma solução da crise.
Ponto abordado com muita serenidade por Wang Yi foi o atual estado das relações entre Estados Unidos e China. Mais uma vez percebe-se, como em todos os pontos abordados durante a entrevista coletiva, a preocupação da China com uma leitura de dada situação dentro de um escopo mais amplo de análise. Por exemplo, para Wang Yi, esta relação “é fundamental para o bem-estar dos dois povos e para o futuro da humanidade”. Expôs que os dois países têm alcançado melhoras nas relações desde a reunião em São Francisco, entre o presidente chinês, Xi Jinping, e seu colega norte-americano Joe Biden em novembro de 2023, mas alertou que as percepções equivocadas dos EUA em relação à China continuam, e as promessas de Washington não foram totalmente cumpridas.
Resumindo, Wang Yi ofereceu uma grande oportunidade à imprensa presente na entrevista para uma melhor compreensão da visão chinesa sobre as ocorrências no mundo. Uma boa síntese desta entrevista pode se encerrar em uma visão que relaciona a busca pela paz mundial baseada na busca por consensos e o fortalecimento da posição do Sul Global.
Por Elias Jabbour, professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro