Os países do Brics, que há mais de dez anos deram início ao mais bem-sucedido bloco de alternativa econômica ao Ocidente imperialista desde o fim da Guerra Fria, sofreram nesta semana grave ameaça às suas integridades nacionais. O ativista Gunther Fehlinger, informalmente ligado à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), por meio de sua entidade Comitê Europeu pela Ampliação da Otan, publicou em suas redes sociais uma proposta de divisão territorial dos países integrantes do Brics, após uma suposta derrota numa suposta guerra que nenhum deles está disposto a travar.
Como a mais poderosa aliança armada do mundo, a Otan, que reúne forças armadas dos Estados Unidos e quase todos os países da Europa ocidental, vem perdendo espaço ante o fortalecimento econômico de vários países, alguns dos quais controlando artefatos nucleares, e que têm se aliado em defesa de seus interesses. No atual conflito Rússia-Ucrânia embora a maior parte dos países do Oriente, inclusive a China, se esforcem por terminar o conflito, mas a incapacidade de negociação por parte da Ucrânia e da própria Otan, que a abastece, mostra-se, contudo, outro entrave a qualquer solução.
Dias depois da postagem, e após veículos respeitados como os russos Sputinik e Russia Today denunciarem a afronta, Fehlinger renunciou ao que disse e afirmou, por meio da rede social X (antigo Twitter), não ter relações com a Otan. “Como vários jornalistas do Brasil têm me procurado, permitam-me esclarecer: 1. Eu não represento a Otan. 2. A Otan não pretende dividir o Brasil ou qualquer outro país. 3. Meu comitê não tem Exército ou fundos, sou só eu e minhas publicações. 4. Sim, eu odeio o genocida russo Vladimir Putin.” Entretanto, não fica claro como ele afirma que a Otan não tem planos sobre o Brasil, se ele não tem relações dentro da Organização que lhe permitam saber.
A política, e sobretudo suas ações mais sombrias, se faz com aproximações sucessivas, avançando-se vagarosamente e distanciando-se estrategicamente até que, com o passar do tempo, o que hoje parece absurdo seja relativizado até ser verdade. Os interesses internacionais em relação à Amazônia, no norte do Brasil, e à bacia do Rio da Prata, no sul, são usualmente apontados quando se fala em ameaça à soberania territorial brasileira. O tema vem adormecido desde o século XIX, quando se encerrou a Guerra do Paraguai, em que Brasil e Paraguai disputaram de forma sangrenta o controle da bacia do Rio da Prata, e a Guerra do Acre, em que Brasil e Bolívia disputaram parte da Amazônia.
Páginas na internet ligadas aos militares brasileiros responderam à ofensa do ativista austríaco. O comunicador Albert Caballé, diretor do site Velho General, publicou na rede X: “Um zumbi idiotizado, um teleguiado atlanticista posando de intelectual”. O ex-comandante da Marinha, diretor do Canal de Youtube Arte da Guerra, Robinson Farinazzo, disse que “é muito positivo que a sociedade brasileira tenha rechaçado imediatamente essas declarações do Fehlinger. Ele nem é autoridade da Otan, é um lobista”, entretanto, ele completou com a necessidade de que os brasileiros resistam à Otan. “Nós não temos nenhum motivo para tratar a Otan com simpatia, isso é uma proposta de divisão do Brasil como foi feito com a Iugoslávia. Onde ela entrou houve destruição. É preciso lidar com essa entidade com ressalvas”.
O analista Javier Vadell, entrevistado pela CRI, reforçou que, se no momento parecem propostas absurdas, elas não estão desconectadas de planos estratégicos geopolíticos que os Estados Unidos e a Otan já tiveram com Russia e China. “O conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos nos anos 1990, Zbigniew Brzezinski, escreveu o livro ‘O grande tabuleiro mundial’, que tinha em mente a fragmentação da Rússia. Dividir para reinar é uma ideia que vem desde o Império Romano e está vinculada às táticas de guerra híbrida do mundo contemporâneo, explorando as contradições regionais de cada país.”
Embora não veja como negligenciável, Vadell avalia esta ideia como retrato do desespero de alguns cidadãos e entidades europeias, ante a ascensão de forças econômicas e militares ao redor do mundo. “Isso pode ser, inclusive, um bumerangue, as estratégias continuam sendo pouco eficazes. Outros países são alvo desse tipo de políticas de fragmentação nacional. A questão é que os efeitos não desejados dessas estratégias, como as sanções econômicas também, produzem o efeito inverso de fortalecer o país e seu povo.”
Mais tarde, veículos de comunicação brasileiros trataram de abafar o caso, enfatizando o fato de Fehlinger não ser comissário da Otan, como inicialmente dito, mas fazendo vistas grossas para o fato de ele ser assumidamente um lobista junto à Otan. Grande parte da população brasileira, no entanto, mobilizou-se, prometendo protestar na conta de Fehlinger na rede X. Diante de sua retratação, a reação arrefeceu. Fica, no entanto, o alerta aos brasileiros e demais cidadãos de países do Brics, quanto ao potencial ofensivo da insegurança europeia e norte-americana ante a ascensão do Sul Global no século XXI.