O general Mark Alexander Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, questionado sobre as perspetivas para a diplomacia na Ucrânia, observou que a recusa inicial em negociar na Primeira Guerra Mundial agravou o sofrimento humano e levou a milhões de baixas. “Então, quando houver uma oportunidade de negociar, quando a paz puder ser alcançada… aproveite o momento”, disse Milley no Economic Club of New York. Essa oportunidade está aberta agora, com a iniciativa da paz da China, expressa no documento “Posição da China sobre a Solução Política da Crise na Ucrânia”. Mas precisamos de afastar do debate político desta iniciativa as falácias, para que todas as nações possam analisar como uma proposta sincera e coerente com a vontade de paz desse país.
A neutralidade militar da China, como do Brasil, da África do Sul, da Índia e de outros países, que desde sempre afirmaram as suas posições de princípio de não fornecer armas a nenhum dos contentores, não pode ser confundida, com neutralidade política. Essa recusa, é igualmente assumida por países como Israel, Turquia e Hungria, não obstante estes pertencerem à UE e à OTAN. Foi esta posição de neutralidade militar, que permitiu ao antigo primeiro-ministro israelita, Naftali Bennett, manter desde o início do avanço das tropas russas na Ucrânia, conversações diretas entre os dois governos. E que a Turquia acolhesse as delegações dos dois países, em conversações que levaram a um acordo de cessar-fogo e de paz, logo no início da guerra e do mês de março, abandonado pela Ucrânia com o argumento de que o massacre de Bucha lhe punha fim! Agora, é nas Nações Unidas e nos países não beligerantes, que se encontra a única reserva de mediação negocial.
Não é a China que conspira para enviar armas à Rússia no futuro. Quem tem de explicar o fornecimento de armamento e equipamento militar à Rússia, durante a guerra civil de 2014 a 2021 na Ucrânia, já depois do embargo aprovado pela União Europeia, são os seus países produtores da indústria de guerra. E, a própria Ucrânia, cujo complexo militar-industrial continuou a ter como cliente número três, a Federação Russa.
Por detrás das calúnias contra a China, escondem-se os traficantes de armas
De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, sediado em Estocolmo, entre 2017 e 2021 a Ucrânia ocupava o 14º lugar na lista dos maiores exportadores de armamento. Os seus clientes principais foram a China e a Tailândia, e, por estranho que pareça e tem sido obliterado, a Rússia manteve-se em terceiro lugar como seu cliente, apesar da guerra civil que, depois do golpe de Estado de 2014, continuou a opor o Donbass, apoiado pela Rússia, aos dois governos ucranianos dos presidentes Poroshenko e Zelensky nesse mesmo período, 2014 a 2021.
Em paralelo, e refiro como fonte o consórcio jornalístico Investigate Europe, dez países da União Europeia exportaram armas para a Rússia depois do embargo de 2014. A França vendeu €152 milhões, através das empresas Safran e Thales, cujo principal acionista é o Estado francês. O número de licenças de produção de material militar emitidas por este país aumentou exponencialmente em 2015, logo após o embargo. A Alemanha, exportou então 121,8 milhões de euros. O governo de Matteo Renzi autorizou a empresa italiana Iveco a vender 25 milhões de euros de veículos terrestres à Rússia. República Checa, Áustria, Bulgária, Croácia, Finlândia, Eslováquia e Espanha repartiram os milhões sobrantes.
Regressemos ao relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, de Estocolmo, para o período de 2017 e 2021 que contém a lista dos maiores exportadores de armamento: Os EUA lideravam com uma quota de 39%, seguidos da Rússia, com 19%, a França com 11% e então a China, com 4,9%, logo depois a Alemanha, com 4,5%. Os países de destino da China foram o Paquistão, Bangladesh e a Tailândia. A guerra da Ucrânia, abriu então às cinco grandes companhias dos EUA, um mercado inesgotável e não apenas na Ucrânia martirizada: os orçamentos dos países da OTAN têm de chegar ao menos a 2% do PIB.
São americanas as cinco maiores empresas da indústria de guerra: Lockheed Martin, Raytheon, General Dynamics, Boeing e Northrop Grumman. Durante a guerra no Afeganistão, receberam contratos do governo no valor de 2.02 biliões de dólares. Constituem lobbies tão poderosos que chegam a absorver 1/3 do orçamento do Pentágono, as suas vendas de armamento ao estrangeiro cresceram 14%, nos últimos cinco anos, enquanto baixavam 4,6% no contexto mundial.
A justa mediação da China na procura da paz na Ucrânia
A China apresentou o documento “Posição da China sobre a Solução Política da Crise na Ucrânia”, como base para cessar as hostilidades e retomar as negociações de paz, afirmando que estes são os pré-requisitos para garantir a resolução da crise humanitária, a proteção de civis e prisioneiros de guerra, facilitar a exportação de grãos e fertilizantes, manter estáveis as cadeias industriais e de abastecimento (face aos riscos de recessão e crise económica globais) e garantir a segurança das centrais nucleares, no quadro da ação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Tal como para preparar e promover a reconstrução pós-conflito.
E colocou sob a mesa negocial três pilares, em que assenta a sua visão dos princípios invioláveis do direito internacional e da Carta das Nações Unidas:
Primeiro pilar – respeitar a soberania de todos os países. A soberania, independência e integridade territorial de todos os países devem ser efetivamente preservadas, confrontando assim a política de guerra da Federação Russa, o que sempre fez nas conversações com o presidente Putin, com o governo ucraniano e nas Nações Unidas.
Segundo pilar – a suspensão de sanções unilaterais, não autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU, confrontando a política de guerra económica da OTAN e da UE.
O presidente francês considera que o plano de paz apresentado pela China é um avanço positivo no caminho para a paz e irá reunir-se com o presidente Xi Jinping, no princípio de abril.
A solução política proposta pela China incorpora ainda uma outra exigência mundial: A redução de riscos estratégicos. Armas nucleares não devem ser usadas e guerras nucleares não devem ser travadas – o terceiro pilar.
Um derradeiro ponto, é o apelo para abandonar a mentalidade da Guerra Fria, o que significa que todas as partes devem opor-se à busca de sua própria segurança em detrimento da segurança de outros, evitar confrontos em bloco e trabalhar juntos pela paz e estabilidade no continente euro-asiático. A segurança de uma região não deve ser alcançada pelo fortalecimento ou expansão de blocos militares. E a longo prazo do mundo, ajudar a forjar uma arquitetura de segurança europeia equilibrada, eficaz e sustentável.
Neste ponto, deverá residir a forma como reagiram o secretário-geral da OTAN e a presidente da Comissão Europeia: sem ouvir primeiro a posição da Ucrânia e da Rússia, apressando-se a denegrir as suas propostas, como se fossem eles a decidir pelas duas nações. E, pela mesma razão, se multiplicaram as suspeições e ameaças de representantes do Estado americano, insinuando a possibilidade de envio de armas chinesas para a Rússia!
Por: António dos Santos Queirós, professor e investigador da Universidade de Lisboa