Por António dos Santos Queirós, professor e investigador da Universidade de Lisboa
A resposta precisa de recorrer a uma heurística negativa e a uma heurística positiva. E, em primeiro lugar, compreender a política internacional da China, num contexto de confronto geopolítico global.
O recurso crítico para entender o caminho chinês para uma nova era, é a filosofia política, desde as suas raízes clássicas até às suas contribuições modernas. Se olharmos para os últimos cem anos, a China deixou “florescer centenas de flores e cem escolas de pensamento, rivalizar”, desde os Três Princípios do Povo, de Sun Yat Sen à Ecocivilização de Xi Jinping. Mas dois princípios fundamentais definem permanentemente a consciência nacional da China e a posição dos seus governos sobre a polícia internacional: o respeito pela soberania e integridade territorial e a coexistência pacífica.
Lao Zi escreveu que devemos respeitar as leis intrínsecas da natureza e das coisas. A agir sem forçar. O que significa, agir com a mínima interferência, mas com firmeza e sentido moral. E escreveu: “quando o Tao está presente no Universo, os cavalos produzem estrume no campo. Quando o Tao está ausente do Universo, os cavalos de guerra são criados à porta das cidades. O homem violento, morrerá violentamente.”
O caminho da paz cruza a política dos cinco princípios da coexistência pacífica, de Mao Zedong e Zhou Enlai, lembremos – respeito mútuo pela soberania e integridade territorial, não agressão mútua, não interferência nos assuntos internos uns dos outros, igualdade e cooperação em benefício mútuo e convivência pacífica. Os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, integrados no preâmbulo da Constituição da República Popular de China, foram adotados pelo Movimento Não Alinhado, no auge da Guerra Fria e reproduzido nos Brics, na iniciativa Cinturão e Rota, e estão presentes em todos os acordos internacionais da China.
Na ONU, desde 1991, a maioria das abstenções do país e todos os seus vetos ocorreram em questões que envolvem integridade territorial, principalmente sanções e a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, facto comprovado pela investigação internacional independente, que concluiu: “estes votos correspondem diretamente à promoção da China dos Cinco Princípios, em especial aos princípios do respeito mútuo pelo território e pela soberania e pela não interferência mútua nos assuntos internos de outros Estados.”
“Salvaguardar a paz no mundo” é também, uma das três tarefas históricas do caminho do socialismo chinês, proclamado por Deng Xiaoping,a segunda, “alcançar a reunificação da nação”, aplicando o princípio de “um país, dois sistemas”, e o terceiro, promover “a modernização socialista “, com a reforma e abertura.
A declaração política chinesa, após o diálogo telefónico de 25 de fevereiro de 2022, quando o presidente Xi Jinping falou com o presidente russo, Vladimir Putin, postulava: “a China incentiva a Rússia a resolver o conflito através de negociações com a Ucrânia. Há muito que a China mantém a posição básica de respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os países e respeitar os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas”.
Sublinho: a posição básica de respeitar a soberania e a integridade territorial de todos os países. E lembro o Tao: agir sem forçar. O que significa, agir, com a mínima interferência, mas com firmeza: a Rússia deve respeitar a soberania e a integridade territorial da Ucrânia. E sentido moral: cumprir os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas! A Rússia iniciou as primeiras negociações de paz, no dia seguinte.
O discurso político também tem de ser amigável e contido. O presidente Xi Jinping acrescentou: “é importante rejeitar a mentalidade de Guerra Fria e chegar a um mecanismo de segurança europeia através da negociação”. Em síntese: a China não apoia a guerra russa, mas não concorda com a escalada das sanções, considerando que, pessoas inocentes são atingidas, as sanções não respeitam o direito internacional, e podem empurrar o mundo para a recessão e o caos econômico. A metáfora da “mentalidade de Guerra Fria” é uma referência crítica à continuação do avanço militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para leste, admitindo que esse alargamento tem desafiado as linhas vermelhas estratégicas da Rússia.
A China, paralelamente, propôs a Iniciativa de Segurança Global, introduzindo um novo princípio para a segurança sustentável: o princípio de “segurança indivisível”. O presidente chinês, Xi Jinping, manteve em 15 de junho uma conversa telefónica com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, e recentemente, conversações em pessoa. E a China não mudou a sua posição de princípio. O presidente russo afirma agora que apoia a Iniciativa de Segurança Global.
E, finalmente, mas não menos importante: durante a 77ª Assembleias da ONU, um dia antes do referendo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, numa reunião com o Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, afirmou que o presidente chinês, Xi Jinping, reafirma que a soberania e a integridade territorial de todos os países devem ser respeitadas, os objetivos e os princípios da Carta das Nações Unidas devem ser plenamente respeitados, as legítimas preocupações de segurança de todos os países devem ser levadas a sério, e todos os esforços que conduzam à resolução pacífica da crise devem ser apoiados.
A Iniciativa de Segurança Global e o princípio de ”segurança indivisível”
O presidente Xi Jinping propõe a Iniciativa de Segurança Global na Conferência Anual do Fórum de Boao para a Ásia, em abril de 2022 o princípio de “segurança indivisível”, rejeita o caminho da construção da própria segurança em detrimento da segurança dos outros, em oposição ao conceito estratégico que levou à criação da Otan e do Pacto de Varsóvia, e à escalada da Guerra Fria.
Este princípio está em consonância com os princípios da ONU, está empenhado em respeitar a soberania e a integridade de todos os países, defende a não interferência nos seus assuntos internos e respeita os diferentes regimes políticos e sociais escolhidos pela história dos seus povos.
É uma nova arquitetura, para a paz perpétua, com que sonhava o filósofo alemão Immanuel Kant, que hoje pode passar para a realidade a partir das Nações Unidas e ser acompanhada pelo desmantelamento progressivo dos pactos militares e pela redução progressiva das armas de destruição em massa – nuclear, química, biológica, digital. A última declaração do representante chinês na ONU, reforça esta posição, a China quer que todas as armas de destruição maciça sejam banidas.
O plano dos EUA contra “a ameaça chinesa” e a Iniciativa Chinesa de Desenvolvimento Global
No ano de 2021, dois documentos estabeleceram duas estratégias opostas para o mundo.
A Iniciativa de Desenvolvimento Global (GDI), proposta pela China na Assembleia das Nações Unidas em 2021, que visa recuperar e concretizar a Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, colocada em risco pela pandemia e pelos conflitos regionais, com um forte contributo da China em todos os domínios críticos, da saúde à transição ecológica.
O denominado “Plano de Ação Estratégica face à China, para combater a ameaça colocada pela República Popular da China”, da responsabilidade do Departamento de Segurança Interna (DHS), dos EUA. Este plano é a chave para entender a intensificação de campanhas hostis sobre Hong Kong, Xinjiang e Taiwan, e incidentes como a suspeição em torno da tecnologia 5G. E explica porque é que a China acusa os EUA de empurrar o sistema internacional para o rumo da “dessinização”, elevando o estatuto do G7 e desvalorizando a importância do G20 e lançando novos acordos multilaterais que excluem a China, como o Diálogo de Segurança Quadrilateral (QUAD) e a Plataforma Econômica Indo-Pacífico para a Prosperidade. O plano estadunidense anuncia a restrição e vigilância policial de todas as atividades e cidadãos da China nos EUA e uma parceria global em todos os continentes, incluindo o Ártico, mas também o espaço sideral, com a mesma intenção negativa. O Acordo de Investimento Global China-UE foi a primeira vítima desse plano agressivo.
Este acordo pode sustentar a queda da Europa
Quando o Acordo de Investimento Global China-UE (CAI), após sete anos de negociações, foi finalmente assinado em dezembro de 2020, Úrsula Von der Leyden, presidente da Comissão Europeia-CE, sinalizou a sua importância estratégica para a União Europeia, já a viver numa nova crise econômica acelerada pela pandemia, porque o CAI permitiria um “acesso sem precedentes ao mercado chinês”.
Os chineses e os europeus quiseram facilitar o acesso ao mercado e reduzir as barreiras ao investimento, ajudando a recuperar a indústria e a economia europeias em sectores como os transportes, os equipamentos de saúde, as telecomunicações…
No entanto, o Parlamento Europeu decretou sanções contra os funcionários chineses e a China respondeu com sanções contra alguns funcionários da UE. Ao aplicar o Plano contra a China, os líderes norte-americanos voltaram a usar a sua influência sobre os partidos dominantes no Parlamento Europeu para suspender a ratificação do acordo. Von Leyden foi silenciada.
O que realmente acontece em Xinjiang? Uma zona piloto da ecocivilização! Dezenove embaixadores da Europa, além do Japão, Canadá e Austrália enviaram cartas à Comissão de Direitos Humanos da ONU criticando a política do governo central em Xinjiang em relação aos grupos étnicos. Sessenta e cinco países, incluindo os principais países muçulmanos, apoiaram a política chinesa em Xinjiang através da carta de resposta dirigida à referida Comissão, elogiando aquilo a que chamam “as notáveis conquistas da China no domínio dos direitos humanos”. E sublinharam:
“Perante o grave desafio do terrorismo e do extremismo, a China empreendeu uma série de medidas de combate ao terrorismo e desradicalização em Xinjiang, incluindo a criação de centros de formação e educação profissionais”.
Nenhum dos países muçulmanos apoia as acusações dos EUA. Lembro que o Comissão de Combate ao Terrorismo do Conselho de Segurança das Nações Unidas registou 16 anos de ataques terroristas em Xinjiang. A carta que apoia a China é assinada pelos grandes países islâmicos, incluindo aliados dos EUA, Arábia Saudita, Paquistão, Omã, Kuwait, Qatar, Emirados Árabes Unidos, Bahrein.
A guerra económica contra a China
Do ponto de vista da China, todos os conflitos que os Estados Unidos promovem direta ou indiretamente, recorrendo à ingerência, agressão e guerra civil, fazem parte de um plano estratégico para reconquistar a hegemonia. A fusão do complexo militar-industrial com a oligarquia financeira, do petróleo, do imobiliário e do negócio dos media criou uma profunda divisão social onde 1% dos americanos controlam 93% do produto interno bruto (PIB), e o orçamento dos dois partidos hegemónicos depende do seu financiamento. Mas todas as tentativas de introduzir responsabilidades e sanções contra a China, relacionadas com a guerra na Ucrânia, falharam. E é uma má ideia tentar provocar uma recessão na economia chinesa, quando os EUA e a União Europeia podem entrar em recessão.
Na perspetiva da China, um mundo dividido por confrontos de blocos, com conflitos táticos militares, a supremacia dos negócios sobre o ambiente e os Direitos Humanos, são o cerne da economia política dos EUA, tragicamente comprovada pela comparação da mortalidade da Covid-19, um milhão e quarenta mil óbitos nos EUA, cinco mil e duzentos falecidos na China.
A China recusa o caminho da Otan de uma nova corrida ao armamento e conclama os países de distintos regimes políticos, a construírem em paz e cooperação um futuro comum para a humanidade.
A implementação do Acordo de Investimento Global China-UE (CAI) pode impactar a Ucrânia e todos os países euro-asiáticos, envolvendo-os na construção de um futuro pacífico e comum, e apoiar a reconstrução sustentável da Ucrânia.
Do fundo do meu coração, desejo, para o novo ano dos povos da Ucrânia e da Rússia, em consonância com a política da China, paz e reconciliação.